SANDRA POULSON

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Sandra Poulson

Sandra é uma pesquisadora baseada em Londres, artista, designer de moda que estuda Fashion Print na Central Saint Martins. Poulson cresceu em Luanda-Angola e mudou-se para Lisboa em 2013, quando iniciou a sua formação académica em Design de Moda na Faculdade de Arquitectura, parte da Universidade Técnica de Lisboa. Em 2014, mudou-se para Londres e estudou no London College of Fashion e depois matriculou-se na Fashion Print na Central Saint Martins. Como pesquisadora e artista, o design funciona como um meio para explorar e comunicar seus interesses, refletindo questões sociais, comportamentais, políticas e valores tradicionais, fazendo uso de suas experiências ao crescer em Luanda como uma de suas influências centrais. A obra da artista visita frequentemente o corpo como um espaço liminar para a discussão por meio de fotografia, hiper-anotação, hiper-documentação, meios mistos, colagem e desenhos que culminam em impressões digitais e feitas à mão sobre tecido. Às vezes, essas impressões são a matéria-prima para roupas usadas por modelos.

The Girl with Open Legs, 2017 © Sandra Poulson.

PD: Conte-nos sobre processo criativo e como lugares diferentes podem  influenciar o seu trabalho.
SP: Sou um ponto de interrogação e tenho interesse em desempacotar conhecimentos que possam possivelmente permitir vários níveis de evolução se forem alcançados pelas pessoas. A minha actividade baseia-se em pesquisas, académicas e auto-reflexivas, no que diz respeito às próprias experiências dentro da minha cultura e povo. Estou interessada no impacto da complexa herança colonial de Angola e em nossas tradições originárias, aquando da formação da sociedade moderna. Esta última, está no centro dos meus estudos sobre questões sociais, políticas e comportamentais. Curiosamente, a minha obra visita frequentemente o corpo como um espaço liminar para a discussão por meio de fotografia, hiper-anotação, hiper-documentação, meios mistos, colagem e desenhos que culminam em impressões digitais e feitas à mão sobre tecido. Às vezes, essas impressões são a matéria-prima para roupas e performances.

PD: A ideia de casa para muitas pessoas significa o lugar onde o coração pertence, essa noção de casa/lar/lugar tem alguma ligação com a infância? Por favor, guie-nos para o lugar que chama de casa/lar/lugar?
SP: Sim absolutamente. Tanto a um nível pessoal, bem como as minhas experiências pessoais influenciam a minha actividade, a infância é uma grande porcentagem do espaço não físico que eu percebo como lar. De fato, uma parte significativa de minha actividade consiste em desconstruir e analisar as primeiras experiências que moldaram quem sou o que inerentemente aconteciam em casa. Mais uma vez, os primeiros 18 anos da minha vida foram vividos na Avenida dos Combatentes, em Luanda-Angola, transformando-me num resultado de várias tensões sociais, culturais, políticas e econômicas. Sendo a avenida de Luanda tão grande, um lugar que funcionava como uma fronteira suave entre o centro da cidade e a Luanda não pavimentada. Vivíamos no meio dessa avenida e deixamos a avenida. Lá fui criado bombardeado com os atritos entre dois lados opostos do espectro da Escassez, enquanto dormia meus sonhos eram bombardeados com o som dos AK47s disparados por gangues locais de jovens, re-encenando os sons de 1992. Lembro-me de deixar o apartamento, que foi cercado por três níveis de portões de metal e um arsenal de plantas em vasos, o que levou algumas pessoas do bairro a me identificarem mais tarde, assim como a minha irmã, como àqueles que viviam nas plantas ou as meninas planta.

Saco Preto do Calendario, 2018 ©Sandra Poulson

PD: Quem são as suas lendas domésticas? Descreva a relação que tem com os(as) mesmos(as).
SP: Não idolatrei muitas pessoas a não ser os meus pais, pois percebi o quanto nos levou para nos apresentar à sociedade e lidar com tantas complexidades e dar-nos as ferramentas para não apenas sobreviver, mas para se destacar. Eu tinha, no entanto, um micro-grupo de pessoas que eram mais velhas do que eu, para as quais tinha muito tempo e de quem estava disposta a aprender. Uma professora de escola primária, uma irmã e irmão e alguns membros de família. Eu estava muito interessada nas conversas dos adultos e tive a sorte suficiente de ser criada numa casa onde era obrigatório assistir ao noticiário da noite – Telejornal – do National Tv Chanel, o que me deu uma perspectiva ao analisar os que no rodeiam. Comecei a fazer cada vez mais e mais perguntas sobre o passado e cresceu em mim a vontade de ajudar as pessoas. Acho que, ao longo do tempo, decidi que as minhas lendas eram cidadãos comuns, as pessoas que realmente me fortalecem são as que criam as suas próprias soluções, apesar das dificuldades que inevitavelmente devem enfrentar.


PD: A sua prática artística envolve o uso de diferentes médias. Pode elaborar o papel que eles desempenham no seu processo e a sua abordagem com cada um deles? E porque tem a necessidade de trabalhar com diferentes mídias?
SP: Dentro da minha actividade, pesquisei e pensei em meios como a hiper-anotação, a hiper-documentação, a escrita participativa, o desenho, os meios mistos, a colagem, a impressão digital, a serigrafia, a performance, a confecção, o vídeo e a fotografia. Este último especificamente é um meio que comecei a explorar quando iniciei meu BA Hons in Fashion. Eu estava interessada não apenas em referenciar trabalhos existentes que considerava relevantes, mas em produzir o meu próprio material e documentar a realidade que identifiquei como sendo minha. Foi também através da fotografia que pude ré-encenar situações, memórias, pessoas às quais não tive acesso imediato, pois eram principalmente referências de experiências vivenciadas em Luanda, e eu atualmente moro no Reino Unido. Mais uma vez, devido ao formato do meu curso superior e às metodologias de um currículo de Moda, a minha urgência em produzir todos os aspectos visuais das minhas respostas às minhas perguntas, só aumentou. Por outro lado o vídeo é um meio que comecei a explorar recentemente em colaboração com um artista e amigo Angolano Raul Jorge Gourgel. Trabalhamos juntos num projeto sobre o qual ainda não posso divulgar muito, mas diz respeito às respostas cotidianas às questões da Escassez partilhadas pelos Angolanos, através das classes sociais e está inundada de comentários. Um trabalho que quase põe num campo de batalha documentação e desempenho, ao mesmo tempo faz referência às consequências do colonialismo e da guerra civil. Tanto a fotografia bem como o vídeo desempenham um papel fundamental na minha actividade, tendo em conta sobretudo o contexto em que minha formação Universitária está-se a desenrolar. Tais meios permitem a redefinição das matérias nas imagens e, muito importante, atuam em livre serviço.

PD: Conte-nos sobre processo criativo e como lugares diferentes podem  influenciar o seu trabalho.
SP: A minha mente, com quem me preocupo, com o que me preocupo, o meu trabalho não são definidos por fronteiras, sobretudo não por fronteiras que foram desenhadas à força no contexto do Mapa Rosa. No entanto, grande parte da minha energia é catalisada no valor, nos valores e potencial do meu povo. Portanto, o meu trabalho tende a recorrer à minha cultura, sobretudo a cultura não escrita, para explorar conversas mais amplas. O meu sentimento de localidade é um pivô essencial para a forma como penso, adapto e transfiro conhecimento. Com isso quero dizer que a maneira como navego e convivo em diferentes povos, finalmente influencia o meu trabalho e influenciará quem trabalha comigo, desde um artista em Luanda até um arquitecto em Londres ou um artesão Equatoriano. Vejo a nossa capacidade de nos mover como uma capacidade de transferência, mas também sinto o desafio de preservar o valor exclusivo de cada local.

Plant Monster Girl, 2017 ©Sandra Poulson

PD: Usando projetos passados, presentes ou em andamento como exemplos, fala-nos mais sobre os temas que aborda, os seus interesses e como isso dá ênfase ao trabalho?
SP: A minha obra envolve vários trabalhos que inevitavelmente se entrelaçam. Curiosamente, sem inicialmente perceber que meus trabalhos re-visitam o corpo, tendo-o como um espaço apenas para a discussão. “Vergonha de Cabelo, nunca Mais” é um exemplo de um trabalho que resume bem algumas das etapas das minhas discussões visuais e académicas sobre o corpo das mulheres e a pressão social e cultural que influenciam a moldá-lo. Tendo como ponto de partida as práticas corporais do género feminino que nos permitem construir o género (além de permitir que nos construa) e dar sentido ao corpo, aqui discuto como controlar as nossas características naturais e manter um corpo dócil, as formas individuais e sobre as influência na forma evoluímos como sociedade. Esse trabalho aparentemente leva a “A Garota de Pernas Abertas”, uma resposta visual à pesquisa académica sobre a institucionalização do estupro como uma ferramenta para monitorar a sexualidade das mulheres. O trabalho explora o meu interesse em saber como, desde a tenra idade, em várias culturas, as mulheres aprendem a temer a instituição do estupro. Por outro lado, trabalhos como ‘Esta é a Boa Mandioca’ e ‘Black Calendário Bag – ‘Saco Preto do Calendário’ utilizam igualmente o corpo como um meio, mas exploram principalmente o simbolismo dos objetos da vida cotidiana na perspectiva da cultura material. Através destes trabalhos, eu navego pelas ruas de Luanda e pelas informalidades que a inundam, analisando as respostas que as pessoas proporcionam à Escassez.

PD: Quais são as iconografias/temas que mais significado têm para si e que influenciam (direta ou indiretamente) a sua prática artística?
SP: Há vários objetos simbólicos presentes na minha actividade, na realidade, muitos deles. São muito importantes para a construção e desconstrução das narrativas que apresento visualmente e através de palavras. Tais elementos iconográficos são principalmente referências a objetos pelos quais eu estava rodeada ao crescer em Luanda, mas principalmente, que eu já encontrei enquanto criança, e que parece perpetuar-se na maioria dos lares angolanos. Objetos como uma Cadeira de Plástico Partida, que ganhou um espaço central no meu trabalho, em torno do qual discuto como inventamos e resolvemos problemas da Escassez. Falta de melhores condições de vida, falta de dinheiro, falta de recursos para móveis mais definitivos, falta de piso na casa, falta de uma casa que não seja afetada pela chuva (realmente inundada) e, portanto, os possíveis móveis de madeira não ficam danificado também. Novamente, a cadeira de plástico quebrada é um exemplo muito claro de como utilizamos dois objetos quebrados para produzir um terceiro muito mais forte e, o mais importante, como identificamos o potencial de um objeto que normalmente descartados imediatamente. Os outros elementos iconográficos presentes no meu trabalho são o Botija de Gás, a Garrafa de Cuca, a Pomba Branca na Garrafa de Cuca, o Traje, as Plantas e outros.

PD: Poderia definir sua prática artística usando quatro palavras-chave descritivas?
SP: Fragmentado. Actual. Progresso. Tradição.

Tia da Mandioca, 2019 ©Sandra Poulson

PD: Existe algo relevante que gostaria de partilhar connosco, assumindo o contexto cultural angolano?
SP: Penso que, devido às suas complexidades como povos, associadas a uma identidade/fronteira/política nacional comum, nós, Angolanos, Angola e o nosso cenário artístico, são um estudo de caso interessante para o estado da arte no mundo. É importante notar que essas fronteiras formais podem diferir muito do alcance das identidades etnográficas e entendimentos do eu e, às vezes, são muito rígidas para contornar o alcance das visões e necessidades de milhões de pessoas delimitadas por essas fronteiras. Angola é, realmente, um exemplo muito intrigante para o resultado do colonialismo, e o mundo está experimentando complexidades comparáveis, pois tudo é inquestionavelmente pós-colonial ou pós-neocolonial (cuidado ao comparar a cena artística angolana com a cena artística mundial, existe tal coisa?) Imagino que a maneira como o mundo da arte opera está alinhada com a maneira como a política e nosso sistema económico mundial funcionam. Redes de pessoas que atribuem valor às coisas e as traduzem isso em números que podem significar dinheiro, o último serve a 1%. No entanto, parece-me que as coisas não são tão em preto e branco quanto o 1% contra os 99%, imagino que seja só uma área cinza onde valor – cultural, relacionado ao progresso, histórico – está sendo criado e documentado, aspirando a atender mais do que 1%. Estou, portanto, interessada nessa área cinza e em como pode servir como trampolim para atender o 1% e distribuir esse poder cultural. Não tenho certeza se é só isso. Estou preocupada com a quantidade de poder que é posto nas mãos de quem atribui valor às obras / artistas / pontos de vista e quanto isso afeta de fato ao que o público tem acesso. Qual a relevância dos trabalhos? Quanto valor tem as obras? Quanto acesso o público tem? Quanta confiança nas instituições precisamos ter? Quem decide o que tem valor, e que valor tem?

PD: Nota aberta: use o espaço abaixo para compartilhar o que quiser, o que considerar relevante (ficção ou realidade).
SP: Eu acho que seria interessante compartilhar aspectos da minha prática que vão além do domínio da minha prática artística e talvez toque mais nos aspectos de responsabilidade social que realmente me interessam. Este ano, tive imensa sorte em ser convidada pela artista e designer têxtil Equatoriana Maria Cuji, que é minha amiga, para desenvolver um workshop baseado na transferência de habilidades de criação e levá-lo para o Equador. Com Maria, tive a chance de partilhar a minha actividade e ensinar técnicas de pensamento criativo a um grupo de homens e mulheres muito talentosos. As pessoas com quem trabalhamos fazem parte de uma base para a reabilitação das pessoas viciadas e estavam incrivelmente interessadas e dispostas em aprender e compartilhar. Também convivi e aprendi muito com eles, a cultura, o idioma e a sociedade que encontrei lá. Acima de tudo. As histórias de pessoas diferentes e os esforços como sociedade para elevar pessoas individuais e ativar aspectos da cultura que podem beneficiar as famílias a um nível económico revelando-se a min como um modelo interessante para algumas questões que também enfrentamos em Angola. Também fez-me querer, mais do que nunca, levar os meus amigos, artistas e profissionais criativos do mundo inteiro para Angola e envolvê-los em projetos com jovens angolanos que merecem ter plataformas para explorar os seus sonhos e ter acesso ao treino necessário para as profissões que aspiram a ter. No Equador, percebi que podia falar portunhol (a tentativa bem-sucedida de falantes de português de falar espanhol), o que me permitiu conversar com todos os que conheci, fazer perguntas e, é claro, no estilo equatoriano, compartilhar meu estatuto social com todos (porque todo mundo perguntou se eu era casado ou tinha um noivo). A dama do chapéu era uma mulher relativamente jovem (com cerca de 17 anos) que conheci na caminhada até uma cachoeira, em nossa jornada para o leste, em direção à Amazônia. Pedi-lhe para tirar uma foto e ela deixou, horas depois encontrarmos novamente na cidade de Baños, no mercado de alimentos, enquanto comíamos na mesma mesa. Ela apresentou-me à sua família, ao marido e dois filhos, e à sua irmã e marido também. Ela perguntou-me sobre o meu. Eu disse que não era casada, e ele ficou bastante surpresa, perguntou-me ‘cuando’? No Equador, perguntaram-me mais sobre o meu marido do que a minha nacionalidade ou o meu nome. Isso fez pôr as minhas prioridades em perspectiva e pensar na maneira como diferentes povos estruturam a sua sociedade. Esta viagem, a minha primeira ao continente, continua revelando conhecimento e desencadeando pensamentos. Como nós, como angolanos, podemos trabalhar através de gerações para criar infra-estruturas suaves para outros angolanos? Como podemos transferir conhecimento de forma mais eficaz? Como o conhecimento local pode ser usado como um recurso para a solução local e eficaz à problemas? Como os artistas/artesãos locais poderiam usar suas habilidades para impactar não apenas suas famílias, mas seus bairros e cidades? Que tipo de projetos/iniciativas são urgentemente necessários localmente? Como a arte pode ser usada nas comunidades para conectar jovens e produzir renda para as famílias? Que tipo de educação pode ser implementada por atores independentes? Como os fabricantes de produtos em todo o país podem ser conectados de formas que os capacitem?

 

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Obrigado por nos conceder acesso ao seu universo. Esta conversa foi conduzida por Januario Jano.